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Blaise Pascal – A miséria da condição humana e a solução religiosa

por Miguel Duclós

Trabalho Originalmente apresentado para a profª Scarlett Marton – FFLCH -USP

Desenvolvimento do tema:
PENSAMENTO 383 – BLAISE PASCAL . “Os que vivem no desregramento dizem aos que vivem na ordem que são estes que se afastam da natureza, e julgam segui-la: como os que estão num barco julgam que os que estão na margem fogem. A linguagem é semelhante em toda parte. É preciso ter um ponto fixo para julgar. O porto julga os que estão no barco, mas onde conseguir um porto na moral?”

A existência humana nesta terra, para Pascal, é paradoxal. Paradoxal porque muda de condição e de qualidade se colocada em relação com dois extremos opostos. Existe um dualismo presente em todas as coisas. São os aspectos contrários entre, por exemplo, quente-frio, devagar-depressa, noite-dia, que nos levam à visão de uma natureza cindida, da existência de uma contradição primordial.  A busca pela superação desta contradição nos levou a formular uma série de teorias, que quando aceitas, nos trazem de volta ao bem estar e ao terreno seguro e constante do Ser.

Não nos é mais cômodo aceitar a filosofia bem resolvida do Ser platônico do que o mundo em transição, exposto de forma obscura por Heráclito de Éfeso? O homem sempre igual a si mesmo não é superior, segundo a tradição, do que o homem como medida, que perante o devir pode tanto ser como não ser?

Nos pensamentos de Pascal, a condição humana é colocada em relação: ele tanto pode ser como não ser. O tema de dois extremos opostos aparece em várias passagens dos Pensamentos, mas é a de número 72 que Pascal, analisando a desproporção do homem, dirá: “o homem é nada em relação ao infinito, tudo em relação ao nada”. À primeira vista, esta proposição pode parecer ir contra a tradição filosófica ocidental, que diz que o ser não pode existir juntamente com o não-ser, ou o que o ser pode ao mesmo tempo ser nada. Mas, se vista à luz do resto dos Pensamentos, ou da conversão religiosa de Pascal depois de um acidente, ela demonstra ter um caráter brilhante. Em primeiro lugar, devemos ter presente a definição de condição humana, o ataque violento empreendido por Pascal à arrogância e vaidade humanas. Para Pascal, o homem é este ponto intermediário entre o tudo e o nada -, ponto este não linear, mas pertencente à estrutura interna, psicológica do homem, vivendo em meio a estrutura maior do universo. Para Pascal, é impossível ao homem conhecer a verdade, pois esta exige o conhecimento dos dois extremos.
O ser humano não percebe que é um animal deslocado perante a imensidão da natureza, e esta não lhe é concedido conhecê-la nem de maneira mais vaga. O homem está deslocado justamente por causa do seu odiável e tirano eu, que de forma irreal, se coloca como o centro do mundo, para poder construir o mundo perceptivo e social visto através de sua perspectiva. O eu não é em si, mas algo criado. Em Pascal existe uma distinção entre o eu e o amor próprio. A comunidade reprime o amor próprio, os impulsos e a vontade, e este pretende-se o centro, pretende sujeitar os outros a si. Ao fazer-se centro eu procura destruir todos os outros eus, que são tomados como seus inimigos. O eu é uma declaração de guerra de um homem separado da natureza.

Ao contrário do homem, o animal ou a árvore não estão extraviados da natureza, eles não se sabem no mundo, não pensam de forma a se desprender da natureza: eles apenas são no seio dela. É do amor próprio e do eu amar apenas a si, como diz Pascal no pensamento 100, mas o homem e o seu eu não pode deixar de se perceber como um ser imperfeito, que “quer ser grande mas acha-se pequeno, quer ser feliz e acha-se miserável.” Para manter seu amor ao eu, o homem tem de inventar inúmeros mentiras e disfarces. O caráter intrínseco do eu e da personalidade humana, é, portanto, hipocrisia e enganação.

O tema do eu na filosofia ganha tratamento específico a partir de Descartes. Pascal conhecia Descartes pessoalmente desde pequeno, quando frequentava um círculo de sábios da época mediante seu pai. Porém, no desenvolvimento do seu próprio pensamento filosófico, e especialmente depois de sua conversão ao cristianismo, Pascal se põe numa posição francamente contrária à orientação racionalista dada por Descartes. É no pensamento 72, que ele declara abertamente: “Descartes: inútil e incerto”. Pascal julga pretensioso o projeto que Descartes concebeu num insight, numa noite de inverno, de dar os alicerces da construção de uma ciência universal. Pascal não pode perdoar Descartes, que através de sua dúvida metódica, reduziu o mundo a uma dimensão quase solipsista, até chegar à primeira verdade: o eu é uma coisa que pensa.  Pascal  condena tanto o uso de Deus em Descartes – que serviria “apenas” para objetivar o mundo -, quanto o eu apenas racional, puro pensamento. Descartes, diz Pascal, bem poderia passar sem Deus, mas usou-o somente quando precisou Dele para que se resolvesse a dicotomia sujeito-objeto, ao fim do quê, jogou-o fora novamente. Para Descartes, Deus era um ser bondoso, mas apesar disso não se pode deixar de notar que um cristão tente a ver com desconfiança a suspeita de Descartes contra um possível Deus Enganador.
Embora Pascal releve importância fundamental ao pensamento, seu eu está bem longe da concepção de cogito cartesiano, que é a condição primeira para a existência, e portanto do saber humano (no que diz respeito ao contexto específico das meditações empreendidas pelo pensador). O homem garante este primeiro saber na medida em que o cogito é garantido verdade toda vez que pronunciado em seu espírito. Talvez um ponto que aproxime Descartes e Pascal é a busca de um ponto fixo, de maneiras diversas.
Em Descartes, o ponto fixo é a busca desta verdade primeira, sob a qual se pode erguer o edifício das ciências, que resultou no cogito. Em Pascal, como explica no pensamento 383, o ponto fixo está ligado à busca  de princípios morais fixos, uma vez que o eu está sempre em movimento, as paixões do homem o levam a ver as coisas de diferentes formas, e a própria condição humana o leva a aceitar a verdade mesclada com falsidade.  A natureza do homem é movimento, fluxo, só os mortos permanecem em repouso. E como achar, diz Pascal, “um ponto fixo para julgar, O porto permite julgar o movimento dos questão no barco, mas como achar um porto na moral?”

O tema do ponto fixo aparece na época renascentista e moderna em diversas áreas do saber humano quando a situação confortável do homem no mundo cai. Como o eu de Pascal, e talvez por causa dele, a Terra ocupava, segundo os dogmas cristãos, a privilegiada posição de centro do universo. Também na física aristotélico-tomista, o geocentrismo prevalecia, e havia a noção do universo como cosmos, ou seja, um mundo finito e ordenado. Embora filósofos como Aristarco de Samos e Nicolau da Cusa tivessem defendido o heliocentrismo, foi somente a partir da infinitização herética de Giordano Bruno e do tratado das revoluções celestes de Copérnico (cujo tema foi desenvolvido depois por Galileu), que estas noções milenares vieram a cair. Isto viria a constituir, no dizer de Freud, a primeira ferida egocêntrica da humanidade.  Este fator e outros, como o salto tecnológico, comercial, urbano e científico, a noção de invidualidade medieval não era mais adequada. Praticamente, a noção de eu enquanto sujeito não existia na Idade Média, o homem estava sujeito à coletividade.

Perdendo sua posição privilegiada, de senhor do mundo e do universo, feito a imagem e semelhança de Deus, o homem se vê sozinho e desamparado sob o universo infinito, que por ser infinito passar a ser também incerto, sem verdades absolutamente válidas. Se para Descartes o cogito é como a alavanca de Arquimedes que permite mover o mundo, para Pascal o ponto fixo é um ponto de vista que adequado para refletir sobre a verdade e o mundo. É um ponto que lhe permite refletir sobre sua situação paradoxal, e um ponto de equilíbrio entre os dois extremos.

Qualquer movimento em direção a um dos contrário, é um movimento perigoso, que afasta do outro. Logo, a questão do equilíbrio passa a ser crucial. Este ponto de equilíbrio não é intermediário, mas sim o princípio de alheamento que proporciona a conciliação entre os dois extremos; mesmo sem eles deixarem de existir, o ponto de equilíbrio oferece a posição necessária para o homem refletir sobre sua condição a partir de seu próprio conflito.

Este ponto é dado pela religião, quando o homem reconhece sua miséria, e por isso torna-se grande. Admitindo Deus e Jesus Cristo como o centro e a razão de todas as coisas, o homem encontra consolo e repouso para sua alma. Somente em Deus os dois extremos se unem, convergem, como num círculo. Porém, para conhecer Deus, o homem deve primeiro saber-se nada. Sabendo-se nada, torna-se tudo. É este o segredo que o fino moralismo de Pascal guarda, o de que, ao livrar-se de sua máscara que a arrogância, o amor e o ódio ao eu produzem, o homem consegue achar uma solução para a tensão entre os dois contrários. Mas Deus não é conhecido pela razão. O espírito geométrico não ocupa a totalidade do espírito, o sentimento, com efeito, é mais presente do que o raciocínio. É por uma faculdade específica humana, um tipo de inteligência imediata e intuitiva, chamada coração (no conceito pascalino), que é permitido ao homem a compreensão de que Deus existe e das verdades reveladas. O coração, diz Pascal, tem razões que a própria razão desconhece, e é ele quem permite perceber a conciliação  entre os dois infinitos: a de que Jesus é o mediador entre o finito e o infinito.  Pascal aponta a debilidade da razão: mesmo na geometria, o axioma é uma verdade intuitiva, e indemonstrável, ou seja, tão clara que é o coração que a conhece.

Assim, está na religião, pelo menos o consolo para a verdade de que o homem, ser transitório, não passa de folha ao vento. barco navegando sem rumo pela imensidão do mundo, julgando ser verdade que é o mundo relativo a ele, e não ele em relativo ao mundo, criando seu próprio centro com o auxílio frágil do eu e da razão, um sendo uma mentira, a outra, frágil demais para conhecer a verdade. Ou como nos conta Pascal:

“O maior filósofo do mundo, sobre uma tábua, por mais larga que seja, se houver embaixo um precipício, embora a razão o convença de sua segurança, a imaginação prevalecerá. Muitos sequer poderiam pensar nisso sem empalidecer e suas (…) . Quem não sabe que a visão dos gatos e dos ratos, o  esmagamento de um carvão põe a razão fora dos eixos?”

A religião, através da igreja e da vidã cristã, proporciona  a fusão entre sujeito e objeto. A relação com Cristo dissolve o Eu. No pensamento 336 Pascal nos lembra que a conduta moral deve sempre lembrar do dever de conduzir bem o pensamento, atingindo um pensamento oculto. Isto significa que a verdade é complexa, feita de elementos múltiplos e discordantes. Nunca devemos nos esquecer desta verdade. Na moral de Pascal, existe, devido à esse caráter complexo, uma  procura de uma prática da anatomia moral, que busca o funcionamento secreto das paixões.

BIBLIOGRAFIA

1. Descartes, René. Descartes . Volume da coleção Os Pensadores, vários livros. Editora Nova Cultural. São Paulo, 1996.
2. Lebrun, Gérard. Pascal Coleção Encanto Radical. Editora Brasiliense, São Paulo.
3. Marton, Scarlett. “Pascal: a busca do ponto fixo e a prática do anatomia moral”, in Revista Discurso nº 24. Discurso Editoral, São Paulo, 1994.
4. Pascal, Blaise. Pensamentos in Os Pensadores, volume XVI, editora Abril Cultural. São Paulo, 1973.

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